Após quase nove anos do acidente de trânsito que matou dois jovens em Curitiba (PR), a Justiça do Paraná marcou para a próxima terça-feira (27) o início do júri popular que vai julgar o ex-deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho, 35, envolvido na batida e denunciado por duplo homicídio.
O agravante de dolo eventual, quando o envolvido assume o risco de matar, foi incluído na acusação por ele estar embriagado ao volante.
O julgamento já havia sido agendado outras duas vezes nos últimos anos, mas foi cancelado após cortes superiores aceitarem recursos da defesa do ex-parlamentar.
Em novembro de 2017, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes revogou liminar que impedia que Carli fosse a júri popular. A decisão permitiu, enfim, a remarcação do julgamento.
O acidente que matou Gilmar Rafael Yared, 26, e Carlos Murilo de Almeida, 20, ocorreu na madrugada do dia 7 de maio de 2009, no bairro do Mossunguê. Os amigos morreram na hora, e o ex-deputado ficou internado por um mês. O carro dos jovens foi completamente destruído.
Exame etílico do Instituto Médico Legal (IML) indicou que Carli dirigia embriagado. Segundo o laudo, havia em seu sangue cerca de oito decigramas de álcool por litro, quatro vezes o limite permitido, de dois decigramas. Posteriormente, em depoimento à Justiça, ele próprio admitiu que havia bebido naquela noite. Também afirmou que não se recordava do acidente.
Laudo do Instituto de Criminalística do Estado constatou que o ex-parlamentar dirigia a uma velocidade entre 167 e 173 km/h. O limite da via é de 60 km/h. Com 130 pontos na carteira de habilitação, 110 acima do permitido, Carli não poderia ter assumido o volante.
A perícia indicou, ainda, que o veículo “decolou” por ao menos dez metros antes de bater no automóvel das vítimas. Segundo a investigação, o carro do deputado vinha em alta velocidade quando passou sobre uma inclinação, perdeu o contato com o solo e voou em direção ao teto do automóvel onde estavam os dois jovens.
FAMÍLIA
A pastora Christiane Yared (PR), 57, diz que dormia em casa, ao lado do marido, quando foi acordada às 2h30 por agentes funerários que buscavam sua assinatura para um seguro. “Queriam o DPVAT. ‘A senhora assina aqui, ó.’ Eu em pânico, desesperada, querendo saber o que aconteceu… ‘Não, a senhora assina aqui para a liberação do corpo.'”
Ela relata que naquela madrugada o marido foi ao IML (Instituto Médico Legal), onde orientaram que outra pessoa reconhecesse o corpo. “Um senhor que estava lá falou: ‘Não entre. Eu trabalho aqui há mais de 15 anos e nunca vi nada igual. O senhor não vai mais dormir’.” Por esta razão, o caixão do filho de Christiane foi lacrado. “Da altura dos ombros para cima não tinha nada. Eu chorei em cima de um pedaço de madeira”, afirma.
Cinco anos após a morte do filho, Christiane se tornaria a deputada estadual mais votada no Paraná, com mais de 200 mil votos, e teria como principal bandeira a segurança no trânsito. Ela diz esperar que o júri popular sirva para criar jurisprudência em torno do tema.
“O júri não é só pelo filho que morreu. A justiça é para os vivos, gente morta descansa”, afirma. “Punir é uma maneira de educar.”
A deputada diz que a Justiça é conivente com os acidentes por “todas as brechas e recursos” que a lei oferece. “Há processos que cabem até 35 recursos. Até onde vai? Até prescrever”, afirma. Christiane diz acreditar que a pressão popular envolvendo o caso do filho foi responsável por dar prosseguimento à ação penal.
A parlamentar ressalta que os acidentes de trânsito estrangulam a saúde pública, a previdência e o Judiciário. Segundo ela, o problema não é devidamente combatido porque existe uma “indústria da morte sobre rodas”. “Quem são? Montadoras, seguradoras, hospitais, empresas de prótese, cemitérios, funerárias, floriculturas, clínicas… Todo mundo se beneficia. É algo macabro.”
Sobre acusações de que teria usado a morte do filho para se promover, Christiane ironiza: “Realmente, pedi para matarem meu filho, acabar com a minha vida, largar minha família, me envolver com um monte de problemas no Congresso Nacional”.
Ela afirma que costuma responder que, enquanto usar a morte do filho, “o teu vai ter a chance que o meu não teve”. “Você acha que eu não abriria mão de tudo isso para ter meu filho comigo de volta?”
ACUSAÇÃO E DEFESA
“Qual o dever da acusação aqui?”, pergunta o advogado Elias Mattar Assad, assistente de acusação do Ministério Público.
Ele próprio responde: provar que duas pessoas morreram (“óbvio, incontroverso”) e que um veículo causou esta morte.
O advogado ressalta que houve confissão da parte. “Esse motorista, o ex-deputado, confessa perante o juiz que ingeriu bebida alcoólica.” Ele lembra que há testemunhas e afirma que a perícia apurou que o carro das vítimas não foi amassado na parte traseira, mas em cima, “típico de aterrissagem”.
A acusação espera que a defesa utilize ao menos duas estratégias. A primeira é reafirmar que Carli trafegava em via preferencial. Em recurso apresentado durante o processo, a defesa disse que o ex-deputado “não teria como prever o choque” porque a preferência seria do ex-parlamentar.
A outra estratégia é apelar para as emoções do júri, argumentando que o ex-deputado já cumpriu sua pena após anos de exposição midiática.
Procurada, a defesa de Carli não retornou os contatos da reportagem.
TRIBUNAL DO JÚRI
O Tribunal do Júri é responsável por julgar crimes dolosos contra a vida. Neste julgamento, cabe a um grupo de cidadãos decidir se houve crime e se o réu é culpado ou inocente. A cada processo, 25 pessoas são sorteadas para comparecer no dia. Então, novo sorteio define as sete que ficarão responsáveis pela sentença. Estima-se que cerca de 200 pessoas assistam ao júri de Carli Filho.
CRONOLOGIA
– maio de 2009 – Dois jovens morrem em Curitiba em acidente de trânsito envolvendo o ex-deputado estadual Carli Filho. Exame do IML constata que Carli estava embriagado
– agosto de 2009 – Laudo do Instituto de Criminalística do Estado, anexado ao inquérito policial, indica que o ex-parlamentar trafegava a uma velocidade entre 167 e 173 km/h, em uma via cujo limite é de 60 km/h
– janeiro de 2013 – Justiça do Paraná marca júri popular para março de 2013
– março de 2013 – A pedido da defesa, STJ (Superior Tribunal de Justiça) suspende o julgamento para que a primeira instância pudesse antes definir se o exame de sangue que comprovou embriaguez era válido
– outubro de 2015 – Outra vez, Justiça do Paraná marca júri popular para janeiro de 2016
– janeiro de 2016 – STF concede liminar a favor da defesa de Carli e suspende o júri até o julgamento dos recursos na corte
– novembro de 2017 – Justiça marca pela terceira vez o julgamento popular, após Gilmar Mendes, ministro do STF, revogar liminar que suspendia o júri. Julgamento é agendado para fevereiro de 2018.
Fonte: Tribuna online